Nas catástrofes atuais, parece que vivemos um paradoxo: se, por um lado, temos um desenvolvimento vertiginoso dos meios de comunicação, por outro, a qualidade da reflexão sobre tais acontecimentos parece ter empobrecido, se comparamos com o tipo de debate gerado pelo terremoto de Lisboa, no século XVIII, que envolveu alguns dos principais pensadores da época. A humanidade está bordejando todos os limites perigosos do planeta Terra e se aproxima cada vez mais de áreas de riscos, como bordas de vulcões e regiões altamente sísmicas, construindo inclusive usinas nucleares nestas áreas. A idéia de limite se perdeu e a maioria das pessoas não parece muito preocupada com isso.
No dia 1° de novembro de 1755, Lisboa foi devastada por um terremoto seguido de um tsunami. A partir de estudos geológicos e arqueológicos, estima-se hoje que o sismo atingiu 9 graus na escala Richter e as ondas do tsunami chegaram a 20 metros de altura. De uma população de 275 mil habitantes, calcula-se que cerca de 20 mil morreram (há estimativas que falam em até 50 mil mortos). Além de atingir grande parte do litoral do Algarve, o terremoto e o tsunami também atingiram o norte da África. Apesar da precariedade dos meios de comunicação de então, a tragédia teve um grande impacto na Europa e foi objeto de reflexão por pensadores como Kant, Rousseau, Goethe e Voltaire. A sociedade europeia vivia então o florescimento do Iluminismo, da Revolução Industrial e do Capitalismo. Havia uma atmosfera de grande confiança nas possibilidades da razão e do progresso científico.
A espetacularização das tragédias e a perda da noção de limite
Em maio de 2010, em uma entrevista à revista Adverso - http://www.adufrgs.org.br/conteudo/sec.asp?id=cont_adverso.asp&InCdMateria=1463 (da Associação dos Docentes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul), o geólogo Rualdo Menegat, professor do Departamento de Paleontologia e Estratigrafia do Instituo de Geociências da UFRGS, criticou o modo como a mídia cobre, de modo geral, esse tipo de fenômeno.
“Ela espetaculariza essas tragédias de uma maneira que não ajuda as pessoas entenderem que há uma manifestação das forças naturais aí e que nós precisamos saber nos precaver. A maneira como a grande imprensa trata estes acontecimentos (como vulcões, terremotos e enchentes), ao invés de provocar uma reflexão sobre o nosso lugar na natureza, traz apenas as imagens de algo que veio interromper o que não poderia ser interrompido, a saber, a nossa rotina urbana. Essa percepção de que nosso dia a dia não pode ser interrompido pelas manifestação das forças naturais está ligada à ideia de que somos sobrenaturais, de que estamos para além da natureza”.
Para Menegat, uma das principais lacunas nestas coberturas é a ausência de uma reflexão sobre a ideia de limite. É bem conhecida a imagem medieval de uma Terra plana, cujos mares acabariam em um abismo. Como ficou provado mais tarde, a imagem estava errada, mas ela trazia uma noção de limite que acabou se perdendo. “Embora a imagem estivesse errada na sua forma, ela estava correta no seu conteúdo. Nós temos limites evidentes de ocupação no planeta Terra. Não podemos ocupar o fundo dos mares, não podemos ocupar arcos vulcânicos, não podemos ocupar de forma intensiva bordas de placas tectônicas ativas, como o Japão, o Chile, a borda andina, a borda do oeste americano, como Anatólia, na Turquia”, observa o geólogo.
Como disse Rousseau, no século XVIII, não foi a natureza que reuniu, em Lisboa, 20.000 casas de seis ou sete andares. Diante de tragédias como a que vemos agora no Japão, não faltam aqueles que falam em “fúria da natureza” ou, pior, “vingança da natureza”. Se há alguma vingança se manifestando neste tipo de evento catastrófico, é a da lógica contra a irracionalidade. Como diz Menegat, a Terra e a natureza não são prioridades para a sociedade contemporânea. Propagandas de bancos, operadoras de cartões de crédito e empresas telefônicas fazem a apologia do mundo sem limites e sem fronteiras, do consumidor que pode tudo.
As reflexões de Kant sobre o terremoto de Lisboa não são, é claro, o carro-chefe de sua obra. A maior contribuição do filósofo alemão ao pensamento humano foi impor uma espécie de regra de finitude ao conhecimento humano: somos seres corporais, cuja possibilidade de conhecimento se dá em limites espaço-temporais. Esses limites estabelecidos por Kant na Crítica da Razão Pura não diminuem em nada a razão humana. Pelo contrário, a engrandecem ao livrá-la de tentações megalomaníacas que sonham em levar o pensamento humano a alturas irrespiráveis. Assim como a razão, o mundo tem limites. Pensar o contrário e conceber um mundo ilimitado, onde podemos tudo, é alimentar uma espécie de metafísica da destruição que parece estar bem assentada no planeta. Feliz ou infelizmente, a natureza está aí sempre pronta a nos despertar deste sono dogmático.
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